1918 - A gripe espanhola e o futebol em Passo Fundo
As notícias sobre um "estranho mal" que acometia soldados envolvidos na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) na Europa e logo se espalhara pela população civil começaram a aparecer em agosto de 1918 nos jornais do Rio de Janeiro, então capital brasileira.
Mas a origem da doença não era a Península Ibérica. Existem algumas hipóteses sobre onde a gripe espanhola surgiu, que vão de um acampamento hospitalar de tropas britânicas na França ao estado norte-americano do Kansas, passando ainda pela China, Áustria e mesmo a Espanha. É impossível precisar, embora comumente se atribua que a gripe chegou à Europa com os soldados norte-americanos envolvidos no conflito.
E também por isso o nome "gripe espanhola" não é o correto. Para manter o ânimo da população e das tropas, os censores da guerra minimizaram os primeiros relatos de doenças e sua mortalidade na Alemanha, Reino Unido, França e Estados Unidos. Mas os artigos eram publicados livremente pela imprensa da Espanha, que se manteve neutra. Isso criou a falsa impressão de o país estar sendo especialmente atingido. Em terras espanholas, a doença recebeu o nome de "gripe francesa".
No Brasil, as notícias sobre a gripe espanhola eram ignoradas ou tratadas com descaso, o que obviamente não impediu que o vírus desembarcasse aqui em setembro de 1918.
O Demerara, primeiro navio da marinha mercante britânica a afundar um u-boat, os temidos submarinos alemães, viera de Lisboa e desembarca doentes no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro. No mesmo mês, marinheiros que prestaram serviço militar em Dacar, no Senegal, na costa atlântica da África, desembarcaram doentes no porto do Recife.
Em pouco mais de duas semanas, surgiram focos em diversas cidades do Nordeste e em São Paulo. Logo o vírus mostraria sua gravidade, vitimando inclusive o presidente da república Rodrigues Alves, eleito em março daquele ano para seu segundo mandato, mas para o qual nem sequer tomou posse, falecendo no Rio de Janeiro em 16 de janeiro de 1919.
A gripe espanhola em Passo Fundo
Em Passo Fundo, o ano de 1918 era de retomada do futebol. Depois do desaparecimento do União (fundado em 1913) e do Serrano (de 1917), o jornal A Voz da Serra chegou a saudar em editoriais a iniciativa de se trazer de volta o "foot-ball". Em maio, era fundado o Gaúcho. Em julho, o Grêmio.
A rivalidade nascera junto com os times fundados basicamente por jovens e adolescentes. O primeiro registro de jogo entre os dois foi em 21 de julho, com o Grêmio vencendo por 2 a 1. Segundo os poucos registros encontrados em jornais de 1918, o Gaúcho jogaria quatro vezes até agosto. Já o Grêmio disputaria pelo menos cinco partidas até o dia 5 de outubro, incluindo um amistoso contra o Guarany de Cruz Alta em Passo Fundo vencido por 1 a 0.
Apesar de não disputarem competições (o próprio Campeonato Gaúcho, que iniciaria em 1918, foi transferido para o ano seguinte), os jovens atletas de Gaúcho e Grêmio foram obrigados a suspender suas atividades, como quase a totalidade dos moradores.
Os primeiros casos na cidade surgiriam em 25 de outubro, segundo noticiou A Voz da Serra, no auge da mais letal das três ondas mundiais da gripe espanhola.
A hipótese mais provável é que o vírus tenha literalmente chegado pela linha do trem. Desde 1910, a via férrea ligava Passo Fundo ao resto do estado e do país via São Paulo.
Tentando se precaver, o tenente-coronel Pedro "Lolico" Lopes de Oliveira, intendente municipal (o equivalente a prefeito na época), convocou os médicos locais para uma reunião no dia 28 de outubro, onde seriam definidas as medidas de urgência a serem adotadas para controlar a pandemia.
Orientações para a população
As orientações dos médicos eram parecidas (ou totalmente adaptáveis) com as que viriam a ser adotadas em 2020 durante a pandemia de covid-19:
- examinar e desinfetar rigorosamente, quando necessário, os trens que chegarem à cidade
- suspender temporariamente a parada dos trens na plataforma do Hotel Internacional
- "convidar a não desembarcar" os passageiros "atacados com o mal espanhol"
- fechar a estação férrea durante a chegada e partida de trens a quem não for passageiro
- declarar obrigatoriamente ao "corpo sanitário" os casos suspeitos ou confirmados de gripe espanhola
- desinfetar os prédios onde ser confirmou a presença de pessoas contaminadas por uma equipe da Diretoria de Higiene do município
- fechar as escolas públicas e particulares e os estabelecimentos em que haja aglomeração (como cafés e cinemas)
- proibir a entrada em casas com moradores doentes e colocar cartazes dizendo "Perigo: influenza espanhola"
- proibir a venda de sais de quinino (remédio usado contra a malária e que na época era uma das tantas tentativas de se combater o vírus) sem receita médica, para garantir o estoque disponível
- pedir a colaboração da comunidade para ajudar na adoção dessas medidas
As medidas foram em vão. Em pouco tempo, a doença se alastrara. Os sintomas mais comuns eram febre alta, dores de cabeça, de garganta e musculares e dificuldade para respirar, que logo podia evoluir para uma quase sempre mortal pneumonia.
A classe mais pobre, que sofria com precárias condições de alimentação e de higiene devido à falta de saneamento básico na cidade, foi a mais afetada. Em 30 de novembro, A Voz da Serra registrava:
"Atirados ao maior abandono, jaziam aglomerados nos vagons, cobertos com saccos velhos, para mais de vinte doentes; dava lastima ver estes pobres miseraveis que ha trez dias não recebiam o menor soccorro medico ou alimentar. E dizer-se que existe uma luxuosa "Caixa do Soccorro" para a qual todos os empregados, compulsoriamente, contribuem com 2$000 mensaes!"
Surgem os hospitais do município
Criado pouco mais de quatro anos antes da chegada da gripe espanhola, em 1914, por iniciativa de Francisco Antonino Xavier e Oliveira, o Hospital de Caridade (hoje Hospital de Clínicas) era o único local adequado para atendimento.
Assim mesmo, a construção do prédio do hospital iniciou apenas no segundo semestre de 1917 e não estava concluída. Devido ao crescimento da demanda, a comissão pró-construção do hospital alugou um casarão de propriedade de Oribe Marques, localizado na esquina das ruas General Osório e General Neto, onde instalou uma enfermaria.
Já o Hospital São Vicente de Paulo, fundado menos de seis meses antes do início da pandemia na cidade, em 24 de junho, por duas organizações compostas por leigos católicos, os vicentinos da Sociedade de São Vicente de Paulo e as zeladoras do Apostolado da Oração, logo precisou dar apoio no atendimento. Foram montadas duas precárias enfermarias, uma masculina e outra feminina, em um antigo pavilhão no centro da cidade. O hospital seria inaugurado oficialmente apenas em 29 de dezembro, quando a pandemia já havia passado. No total, 76 pessoas foram atendidas no São Vicente de Paulo. Destas, 61 conseguiram se recuperar, mas 11 adultos e 4 crianças morreram.
Gastos da intendência incluíram até compra de galinhas
No dia 18 de novembro, o Conselho Municipal (a Câmara de Vereadores à época) aprovava uma lei especial para que se usasse toda a verba do município que fosse necessária para combater a gripe espanhola. O orçamento da intendência em 1918 era de 271 contos e 280 mil réis (271:280$000).
Os valores gastos pela intendência no enfrentamento da pandemia aparecem no relatório apresentado pelo coronel Lolico ao Conselho em 1º de novembro de 1919. Foram exatos 20:157$310, ou o equivalente a 7,43% do orçamento anual. Até galinhas foram adquiridas pelo governo, para serem distribuídas aos pobres como reforço na alimentação e na preparação de canjas.
Item | Valor |
---|---|
Medicamentos | 8:426$700 |
Ajuda aos seis distritos municipais | 3:617$000 |
Hospital de Caridade | 2:581$000 |
Hospital São Vicente de Paulo | 1:958$000 |
Honorários médicos e transporte | 998$000 |
Auxílio a doentes | 844$000 |
Pessoal de socorro | 518$910 |
Socorro a pobres | 452$200 |
Sepultamentos e cemitério | 311$800 |
Compra de galinhas | 220$000 |
Outros | 229$700 |
Total | 20:157$310 |
É muito difícil fazer uma conversão de valores de réis de 1918 para reais devido às mudanças de moeda e principalmente à hiperinflação (e os famosos "cortes de zeros" nos valores monetários) que assolou o Brasil por tanto tempo. Ainda assim, o jornal O Estado de São Paulo faz uma estimativa, que divide a quantia original pelo número de exemplares que podiam ser comprados na época. Então, multiplica-se o resultado pelo valor de um exemplar atualmente e se chega a, pelo menos, uma comparação do poder de compra. Assim, 271 contos e 280 mil réis seriam equivalentes em dezembro de 2021 a R$ 13,5 milhões. Já os 20 contos de réis gastos na pandemia representariam pouco mais de R$ 1 milhão. Como comparação, o orçamento do município de Passo Fundo em 2020 foi de R$ 710,4 milhões. Se tivessem sido empregados 7,43% desse valor, a prefeitura teria investido quase R$ 52,8 milhões no combate à doença apenas com recursos próprios.
O fim da pandemia e a volta do futebol
Em Passo Fundo, as enfermarias provisórias dos hospitais de Caridade e do São Vicente de Paulo suspenderam as atividades em dezembro de 1918. Na reunião da diretoria do Hospital de Caridade do dia 18 daquele mês, foi feito um agradecimento especial ao médico Armando Vasconcellos por ter atendido gratuitamente 18 doentes da gripe espanhola encaminhados pela Sociedade do Hospital de Caridade em seu consultório e em suas casas. Ainda, em janeiro de 1919, o hospital receberia 500 mil réis da Caixa de Socorro da Viação Férrea por ter atendido 47 funcionários da companhia da estrada de ferro.
Depois de uma terceira onda bem mais fraca, em 1920, os casos de gripe espanhola desapareceram no mundo. Uma teoria é que o vírus sofreu uma mutação rápida e ficou menos mortal.
Não há números precisos, obviamente, mas estima-se que até 500 milhões de pessoas foram contaminadas, cerca de 25% da população mundial da época. Entre 17 milhões e 100 milhões morreram, principalmente adultos jovens.
No Brasil, calcula-se que a gripe espanhola tenha matado de 35 mil a mais de 300 mil pessoas. Em Passo Fundo, que tinha 7,5 mil habitantes em 1918, foram 105 mortos, o equivalente a 1,4% da população.
Entre as vítimas estava o empresário, político, delegado, suplente de juiz e fundador do A Voz da Serra capitão Jovino da Silva Freitas, que morreria aos 41 anos no dia 19 de novembro.
A esposa dele, Juliana de Mello Freitas, mandou construir um túmulo especial para o marido. Mas a história diz que a viúva "não gostou da opulência" quando viu o jazigo com seus 14 metros de altura no Cemitério Vera Cruz. Anos mais tarde, o mausoléu, hoje patrimônio histórico da cidade, foi doado ao 8º Regimento para sepultar os militares mortos na Revolução Constitucionalista de 1932. O corpo de Jovino Freitas, que desde 1966 dá nome a uma das principais praças da cidade, repousa em uma tumba próxima.
Enquanto isso, no futebol, Gaúcho e Grêmio entrariam novamente em campo, pelos registros encontrados nos jornais da cidade, apenas no dia 11 de maio de 1919, para o jogo que marcaria o primeiro aniversário do alviverde. Atuando em sua cancha no Boqueirão, onde décadas mais tarde seria o Estádio Wolmar Salton, o Gaúcho venceria por 1 a 0.
Já o vírus da influenza só seria isolado em 1933. Finalmente, em 1944, pesquisadores da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, desenvolveriam a primeira vacina contra a gripe.